Chuva



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Acordou cedo, e de mau humor, para um dia de trabalho, que prometia ser longo e aborrecido, e que terminaria, invariavelmente, com ele a regressar aquela casa vazia, esgotado e com a cabeça em água.
Quando abriu a janela, viu que estava a chover. Tudo o que ele precisava para lhe adensar ainda mais o estado de espírito soturno em que já se encontrava. Não pela chuva, essa já não o incomodava, naquela cidade fartava-se de chover. Não... era ela que o perturbava, a lembrança dela, a assombrar-lhe mais um dia de solidão. Lembrava-se sempre dela quando os dias começavam a mudar e aquela luminosidade invernal se instalava.

Era só mais um dia, um dos primeiros de inverno, frio e chuvoso. Tinha feito uma pausa no trabalho depois de horas a  resolver um berbicacho. Reparou nela porque o laranja do guarda-chuva era o único ponto colorido no meio daquela névoa cinzenta e triste que cobria a cidade. Observou-a por instantes, enquanto se debatia, lutando contra o vento para fechar o guarda chuva, sem qualquer sucesso. Apagou o cigarro e foi ajudá-la. Ela ria, numa gargalhada semelhante a um chilreio, não parecendo minimamente importada com a chuva que os ensopava. Agradeceu-lhe e convidou-o para um café.

Sentaram-se, frente a frente e á medida que conversavam foi reparando em pequenos pormenores. Tinha uma voz grave, de tom quente e a entoação parecia-lhe quase musical, com muitas inflexões, perfeitamente condizentes com as palavras que dizia, revelando sinceridade. Falava de sentimentos e sonhos, com o entusiasmo e a inocência de uma menina, muito embora fosse uma mulher e parecesse ter os pés bem assentes na terra. Não era especialmente bonita, mas tinha uns olhos expressivos e profundos, num tom de castanho avelã que, por um motivo qualquer, não pareciam combinar com ela, como se devessem ser de outra cor, ou talvez fosse apenas da incidência da luz, não tinha a certeza. Do que não tinha dúvidas é de que falava com o olhar. Pensou com os seus botões que ela era...diferente. Havia no fundo do olhar dela um brilho algo melancólico e desejou saber-lhe a história, para melhor a compreender. Quando sorriu, reparou nas covinhas do sorriso e foi como se toda a sala se iluminasse. O efeito daquele sorriso nele foi estranho, como se o ar se lhe tivesse esgotado nos pulmões, como se respirar fosse totalmente desnecessário, desde que ela sorrisse.

Recordava-se de ter pensado que o tempo parecia parado, e que não importava, desde que pudesse ficar ali sentado, na companhia dela, com o vapor do café a subir das chávenas e aquele aroma delicioso a pairar entre eles.

Mas o tempo não estava parado, a noite começou a caír e viu-a chegar, na companhia dela, que distraidamente olhava a rua, com a luz laranja dos candeeiros a incidir-lhe na face, dando-lhe um ar quase etéreo. E baixinho, como se tivesse medo de quebrar a magia do momento, ela disse-lhe que tinha de ir. Beijou-o, no rosto, e ele sentiu pela última vez, o perfume de côco. Viu-a saír para a rua e ficou a contemplar-lhe a silhueta até a perder de vista, no meio da névoa.

Sentiu o ímpeto de a seguir, de correr atrás dela, de lhe pedir que não fosse, mas não o fez. Não podia fazê-lo.
Estava tão destroçado que jamais poderia fazer alguém feliz, além disso, ela parecia-lhe uma alma pura, não podia arrasta-la para o meio dos fantasmas dele, agarrar-se a ela como tábua de salvação, para no fim, ela estar tão arruinada como ele.

Ficou durante muito tempo sentado, depois de a ver partir, inerte, a sentir o vazio que ela deixava atrás de si, a pensar se a voltaria a ver, a tentar adivinhar se, da próxima vez, o timing seria o certo.

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