Desencanto



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"Deixarei de escrever apenas quando deixar de me encantar"

As palavras dela, ditas tantos anos antes, assombravam-no agora.
Nunca deixara de a ler. Á distância, desvendou-lhe as metáforas, conhecendo a realidade por trás das hipérboles.

E durante anos, independentemente do momento que atravessasse, ela escreveu, e havia sempre encanto, mesmo quando escrevia sobre dor e sofrimento, sobre angústia e mágoa, sobre lágrimas e tristeza, como se cada um desses sentimentos fosse uma descoberta,  como se o simples facto de os poder sentir fosse uma magia qualquer que ela ansiasse por dominar.

E de repente tudo mudou.  Começou a escrever cada vez mais raramente, cada vez com menos paixão, cada vez num tom mais indiferente, como se escrever fosse uma obrigação e já não gostasse de o fazer, como se sentir fosse um tormento e quisesse simplesmente desistir.

As palavras dela vieram-lhe á memória e soube que era o fim, que algo ou alguém a desencantara e que ela nunca mais escreveria.

E quase a viu, sentada na esplanada, com o café ao lado, a terminar o texto, pousar a caneta, fechar o bloco e desistir, por fim, vencida.

Bluff



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Sorri, com aquele sorriso enigmático de quem guarda um trunfo qualquer na manga, e vai a jogo, mesmo que seja bluff.

As probabilidades nunca estiveram a seu favor de qualquer das formas, e ela também não é feita de matemáticas e de pouco lhe importam as raízes quadradas e as equações...

A anatomia está toda trocada, é paixão o que lhe corre nas veias, traz na boca o coração, á flor da pele, as emoções...

Não a assustam os duplos sentidos, os jogos de palavras, os avisos velados para que recue, de quem já lhe sabe os truques e as manias e  a interpreta na perfeição.

Move-se por instinto, com o coração na dianteira, sem um pingo de racionalidade, sem premeditação, sem antever consequências, sem se preocupar em escudar a alma dos golpes que a puta da vida lhe poderá inflingir.

E vai a jogo...

E se... Adeus?



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Desespera e desencanta, na espera do que nunca foi e jamais será, na incerteza do que poderia ter sido.

Põe trancas em todas as portas, fecha todas as janelas, atira a chave fora e ateia fogo a tudo, deixa arder até às fundações.

Congela os sentimentos, para serem mais fáceis de despedaçar, e até o respirar dela é semelhante a um vento frio, e os olhos brilham como pequenos cristais de gelo.

Rema contra a maré, não se deixa submergir pelos "e se..." e "talvez..." , antes afogar-se na absoluta certeza do impossível!

Corre contra o vento que lhe traz aquela brisa de dúvida, corre sem nunca olhar para trás, temente do que um olhar mais demorado lhe possa fazer.

Não lhe diz um adeus, nem se despede, deixa o silêncio, aquele silêncio que os condenou, a ecoar no vazio que ficou, no lugar onde ela estava e já não está, no lugar onde poderia ter sido, mas nunca será...

Chuva



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Acordou cedo, e de mau humor, para um dia de trabalho, que prometia ser longo e aborrecido, e que terminaria, invariavelmente, com ele a regressar aquela casa vazia, esgotado e com a cabeça em água.
Quando abriu a janela, viu que estava a chover. Tudo o que ele precisava para lhe adensar ainda mais o estado de espírito soturno em que já se encontrava. Não pela chuva, essa já não o incomodava, naquela cidade fartava-se de chover. Não... era ela que o perturbava, a lembrança dela, a assombrar-lhe mais um dia de solidão. Lembrava-se sempre dela quando os dias começavam a mudar e aquela luminosidade invernal se instalava.

Era só mais um dia, um dos primeiros de inverno, frio e chuvoso. Tinha feito uma pausa no trabalho depois de horas a  resolver um berbicacho. Reparou nela porque o laranja do guarda-chuva era o único ponto colorido no meio daquela névoa cinzenta e triste que cobria a cidade. Observou-a por instantes, enquanto se debatia, lutando contra o vento para fechar o guarda chuva, sem qualquer sucesso. Apagou o cigarro e foi ajudá-la. Ela ria, numa gargalhada semelhante a um chilreio, não parecendo minimamente importada com a chuva que os ensopava. Agradeceu-lhe e convidou-o para um café.

Sentaram-se, frente a frente e á medida que conversavam foi reparando em pequenos pormenores. Tinha uma voz grave, de tom quente e a entoação parecia-lhe quase musical, com muitas inflexões, perfeitamente condizentes com as palavras que dizia, revelando sinceridade. Falava de sentimentos e sonhos, com o entusiasmo e a inocência de uma menina, muito embora fosse uma mulher e parecesse ter os pés bem assentes na terra. Não era especialmente bonita, mas tinha uns olhos expressivos e profundos, num tom de castanho avelã que, por um motivo qualquer, não pareciam combinar com ela, como se devessem ser de outra cor, ou talvez fosse apenas da incidência da luz, não tinha a certeza. Do que não tinha dúvidas é de que falava com o olhar. Pensou com os seus botões que ela era...diferente. Havia no fundo do olhar dela um brilho algo melancólico e desejou saber-lhe a história, para melhor a compreender. Quando sorriu, reparou nas covinhas do sorriso e foi como se toda a sala se iluminasse. O efeito daquele sorriso nele foi estranho, como se o ar se lhe tivesse esgotado nos pulmões, como se respirar fosse totalmente desnecessário, desde que ela sorrisse.

Recordava-se de ter pensado que o tempo parecia parado, e que não importava, desde que pudesse ficar ali sentado, na companhia dela, com o vapor do café a subir das chávenas e aquele aroma delicioso a pairar entre eles.

Mas o tempo não estava parado, a noite começou a caír e viu-a chegar, na companhia dela, que distraidamente olhava a rua, com a luz laranja dos candeeiros a incidir-lhe na face, dando-lhe um ar quase etéreo. E baixinho, como se tivesse medo de quebrar a magia do momento, ela disse-lhe que tinha de ir. Beijou-o, no rosto, e ele sentiu pela última vez, o perfume de côco. Viu-a saír para a rua e ficou a contemplar-lhe a silhueta até a perder de vista, no meio da névoa.

Sentiu o ímpeto de a seguir, de correr atrás dela, de lhe pedir que não fosse, mas não o fez. Não podia fazê-lo.
Estava tão destroçado que jamais poderia fazer alguém feliz, além disso, ela parecia-lhe uma alma pura, não podia arrasta-la para o meio dos fantasmas dele, agarrar-se a ela como tábua de salvação, para no fim, ela estar tão arruinada como ele.

Ficou durante muito tempo sentado, depois de a ver partir, inerte, a sentir o vazio que ela deixava atrás de si, a pensar se a voltaria a ver, a tentar adivinhar se, da próxima vez, o timing seria o certo.

Cicatrizes.



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Eu sei como te sentes. Conheço-te os tiques e as manias de trás para a frente, sei-te os truques de cor.

Sei que te conténs, nas palavras que gostarias de dizer, mas guardas para ti, sempre com medo que a tua opinião não importe, como se ninguém quisesse ouvir o que tens para dizer.

Refugias-te na ironia, porque te permite dizer, quase a brincar, aquilo que te vai na alma, sem que ninguém te leve demasiado a sério.

Sei que  te refreias nos afectos, não os demonstrando, com receio da rejeição, convicta de que ninguem poderia ter por ti o mesmo carinho, como se fosses indigna de amor.

Escudas-te na distância, porque se não te aproximares demasiado, não poderás
sentir apego e a rejeição não dói tanto.

Sei que quando falhas, ficas triste, e te perguntas vezes sem conta porque é que não fazes nada certo, com aquele sentimento horrível de falhanço a imiscuir-se em todo o teu ser, a fazer-te acreditar que faças o que fizeres, nunca será o suficiente.

E por isso, preferes resolver os teus problemas sozinha, mesmo que precises desesperadamente de ajuda, apenas e só para não teres de admitir a ninguém que falhaste e que és inútil.

Sei que escondes as mãos dentro das mangas do casaco, numa tentativa inconsciente de te esconderes, de passares despercebida. Porque se ninguém te vir, ninguém poderá fazer-te sentir  indesejada.

Sei que, quando não te podes esconder, e te sentes exposta e desconfortável, enrolas a mesma madeixa de cabelo, vezes sem conta nos dedos, ou entrelaças as mãos, apenas para teres algo que te distraia e um pretexto para pareceres ausente.

Sei que não olhas as pessoas nos olhos, temente de que lhes possas ver nas expressões o repúdio por ti, e por isso, preferes olhar um ponto acima das suas cabeças e imaginar que sorriem. 

Sei que caminhas quase sempre de olhos no chão porque isso te dá uma boa desculpa para, caso te cruzes com alguém conhecido, não teres de dizer um olá desajeitado.
  
Sei que fazes um sorriso incerto quando te dizem algo simpático, como se não acreditasse na possibilidade de alguém ter algo simpático para te dizer, habituada que estás a esperar o pior das pessoas.

Sei que te sentes a mais vezes demais, como se não devesses estar ali, e que por isso ficas em silêncio a assistir ao que acontece, sem te mexeres, sem te pronunciares.

Sei que não gostas particularmente daquela pessoa, cheia de defeitos escondidos por baixo da maquilhagem, que te olha do outro lado do espelho. Aquela pessoa que te encara, sempre com os olhos, da cor errada, semicerrados, num olhar de permanente desaprovação, e os lábios, demasiado finos, cerrados numa linha dura que claramente indicam desprezo por quem és.

Conheço-te todas as inseguranças e medos, e posso narrar-te cada episódio de rejeição, contar-te cada história de humilhação, porque sei de onde vêm cada uma das cicatrizes que tentas mascarar, cada uma das marcas que te esforças todos os dias por esconder.

...



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Enrola-te em ti mesma, como se isso fosse manter-te inteira, como se pudesse impedir que a escuridão alastre e te devore até á essência, deixando apenas um fantasma de ti.


Encolhe-te quando doer, num gesto quase automático, como se ao encolheres-te conseguisses escudar-te da dor, como se pudesses esconder-te e vê-la passar, apenas de raspão, quase sem te tocar.


Cerra os dentes, morde a bochecha, o que for preciso, para não gritares quando for demais, quando já não a conseguires suportar, e sofre em silêncio.


Não os olhes nos olhos, para que não vejam o vazio de ti alternar com a tristeza que transborda, inundando-te o olhar, e não terás de ver em olhos alheios o sentimento de pena que lhes inspiras e que tanto repudias.


Não fales sobre isso, deixa que o nó que sentes na garganta, te estrangule as palavras, em vez de as dizeres, em vez de lhes confessares que estás estilhaçada, e nunca te poderão apontar a fraqueza, nunca terão as armas para te poderem ferir novamente.


Não deixes que te toquem, com o pretexto de te confortarem, sob pena de ruíres completamente, de veres as tuas muralhas, que tão cuidadosamente ergueste, inertes aos seus pés, apenas para que possam trepar por elas, pisando o que ainda resta do forte que te protegeu, até te poderem olhar de cima.


Não deixes que te vejam chorar. Engole as lágrimas, afoga-te nelas se preciso for, mas não derrames uma única. Não te permitas declarar, de forma tão indesmentível, a tua fragilidade. Não deixes que te saibam capaz de sentir até ás lágrimas.


Enclausura-te em ti mesma, faz do teu silêncio o teu casulo e não deixes que saibam o que te consome.


Sorri, mesmo sem vontade, ninguém dará pela diferença. E se te perguntarem se estás bem, mente, ninguém saberá.


Se não puderes dizê-lo com palavras, di-lo com o olhar



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O tempo parece parado, petrificado naquele instante, em que, pela primeira vez, consegue lê-la. Fitam-se, e ela sustenta-lhe o olhar, dona e senhora de si, como se nada temesse, como se o desafiasse, convidando-o a desvendá-la.

Não fala, limitando-se a olhá-lo, sem subterfúgios, sem o habitual baixar de cabeça, sem nunca desviar o olhar, revelando-se. E naquele castanho caramelizado, encontra a resposta á dúvida que o assalta, intermitentemente, ao sabor das aproximações e distanciamentos dela. Vê na limpidez daqueles olhos, a transparência e sinceridade das palavras que deixa por dizer.  E o brilho que lhe dança no olhar, reflecte o fogo daquele sentimento que a consome.

Ela sorri, trazendo-o de volta ao presente, agindo como se depositar a alma no olhar, á mercê da análise dele, fosse tão simples como respirar, muito embora, num último relance, lhe tenha desvendado um breve lampejo de medo, a certeza absoluta de que ele  a tinha lido na perfeição e agora, finalmente, sabia.

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