Desencanto



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"Deixarei de escrever apenas quando deixar de me encantar"

As palavras dela, ditas tantos anos antes, assombravam-no agora.
Nunca deixara de a ler. Á distância, desvendou-lhe as metáforas, conhecendo a realidade por trás das hipérboles.

E durante anos, independentemente do momento que atravessasse, ela escreveu, e havia sempre encanto, mesmo quando escrevia sobre dor e sofrimento, sobre angústia e mágoa, sobre lágrimas e tristeza, como se cada um desses sentimentos fosse uma descoberta,  como se o simples facto de os poder sentir fosse uma magia qualquer que ela ansiasse por dominar.

E de repente tudo mudou.  Começou a escrever cada vez mais raramente, cada vez com menos paixão, cada vez num tom mais indiferente, como se escrever fosse uma obrigação e já não gostasse de o fazer, como se sentir fosse um tormento e quisesse simplesmente desistir.

As palavras dela vieram-lhe á memória e soube que era o fim, que algo ou alguém a desencantara e que ela nunca mais escreveria.

E quase a viu, sentada na esplanada, com o café ao lado, a terminar o texto, pousar a caneta, fechar o bloco e desistir, por fim, vencida.

Bluff



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Sorri, com aquele sorriso enigmático de quem guarda um trunfo qualquer na manga, e vai a jogo, mesmo que seja bluff.

As probabilidades nunca estiveram a seu favor de qualquer das formas, e ela também não é feita de matemáticas e de pouco lhe importam as raízes quadradas e as equações...

A anatomia está toda trocada, é paixão o que lhe corre nas veias, traz na boca o coração, á flor da pele, as emoções...

Não a assustam os duplos sentidos, os jogos de palavras, os avisos velados para que recue, de quem já lhe sabe os truques e as manias e  a interpreta na perfeição.

Move-se por instinto, com o coração na dianteira, sem um pingo de racionalidade, sem premeditação, sem antever consequências, sem se preocupar em escudar a alma dos golpes que a puta da vida lhe poderá inflingir.

E vai a jogo...

E se... Adeus?



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Desespera e desencanta, na espera do que nunca foi e jamais será, na incerteza do que poderia ter sido.

Põe trancas em todas as portas, fecha todas as janelas, atira a chave fora e ateia fogo a tudo, deixa arder até às fundações.

Congela os sentimentos, para serem mais fáceis de despedaçar, e até o respirar dela é semelhante a um vento frio, e os olhos brilham como pequenos cristais de gelo.

Rema contra a maré, não se deixa submergir pelos "e se..." e "talvez..." , antes afogar-se na absoluta certeza do impossível!

Corre contra o vento que lhe traz aquela brisa de dúvida, corre sem nunca olhar para trás, temente do que um olhar mais demorado lhe possa fazer.

Não lhe diz um adeus, nem se despede, deixa o silêncio, aquele silêncio que os condenou, a ecoar no vazio que ficou, no lugar onde ela estava e já não está, no lugar onde poderia ter sido, mas nunca será...

Chuva



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Acordou cedo, e de mau humor, para um dia de trabalho, que prometia ser longo e aborrecido, e que terminaria, invariavelmente, com ele a regressar aquela casa vazia, esgotado e com a cabeça em água.
Quando abriu a janela, viu que estava a chover. Tudo o que ele precisava para lhe adensar ainda mais o estado de espírito soturno em que já se encontrava. Não pela chuva, essa já não o incomodava, naquela cidade fartava-se de chover. Não... era ela que o perturbava, a lembrança dela, a assombrar-lhe mais um dia de solidão. Lembrava-se sempre dela quando os dias começavam a mudar e aquela luminosidade invernal se instalava.

Era só mais um dia, um dos primeiros de inverno, frio e chuvoso. Tinha feito uma pausa no trabalho depois de horas a  resolver um berbicacho. Reparou nela porque o laranja do guarda-chuva era o único ponto colorido no meio daquela névoa cinzenta e triste que cobria a cidade. Observou-a por instantes, enquanto se debatia, lutando contra o vento para fechar o guarda chuva, sem qualquer sucesso. Apagou o cigarro e foi ajudá-la. Ela ria, numa gargalhada semelhante a um chilreio, não parecendo minimamente importada com a chuva que os ensopava. Agradeceu-lhe e convidou-o para um café.

Sentaram-se, frente a frente e á medida que conversavam foi reparando em pequenos pormenores. Tinha uma voz grave, de tom quente e a entoação parecia-lhe quase musical, com muitas inflexões, perfeitamente condizentes com as palavras que dizia, revelando sinceridade. Falava de sentimentos e sonhos, com o entusiasmo e a inocência de uma menina, muito embora fosse uma mulher e parecesse ter os pés bem assentes na terra. Não era especialmente bonita, mas tinha uns olhos expressivos e profundos, num tom de castanho avelã que, por um motivo qualquer, não pareciam combinar com ela, como se devessem ser de outra cor, ou talvez fosse apenas da incidência da luz, não tinha a certeza. Do que não tinha dúvidas é de que falava com o olhar. Pensou com os seus botões que ela era...diferente. Havia no fundo do olhar dela um brilho algo melancólico e desejou saber-lhe a história, para melhor a compreender. Quando sorriu, reparou nas covinhas do sorriso e foi como se toda a sala se iluminasse. O efeito daquele sorriso nele foi estranho, como se o ar se lhe tivesse esgotado nos pulmões, como se respirar fosse totalmente desnecessário, desde que ela sorrisse.

Recordava-se de ter pensado que o tempo parecia parado, e que não importava, desde que pudesse ficar ali sentado, na companhia dela, com o vapor do café a subir das chávenas e aquele aroma delicioso a pairar entre eles.

Mas o tempo não estava parado, a noite começou a caír e viu-a chegar, na companhia dela, que distraidamente olhava a rua, com a luz laranja dos candeeiros a incidir-lhe na face, dando-lhe um ar quase etéreo. E baixinho, como se tivesse medo de quebrar a magia do momento, ela disse-lhe que tinha de ir. Beijou-o, no rosto, e ele sentiu pela última vez, o perfume de côco. Viu-a saír para a rua e ficou a contemplar-lhe a silhueta até a perder de vista, no meio da névoa.

Sentiu o ímpeto de a seguir, de correr atrás dela, de lhe pedir que não fosse, mas não o fez. Não podia fazê-lo.
Estava tão destroçado que jamais poderia fazer alguém feliz, além disso, ela parecia-lhe uma alma pura, não podia arrasta-la para o meio dos fantasmas dele, agarrar-se a ela como tábua de salvação, para no fim, ela estar tão arruinada como ele.

Ficou durante muito tempo sentado, depois de a ver partir, inerte, a sentir o vazio que ela deixava atrás de si, a pensar se a voltaria a ver, a tentar adivinhar se, da próxima vez, o timing seria o certo.

Cicatrizes.



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Eu sei como te sentes. Conheço-te os tiques e as manias de trás para a frente, sei-te os truques de cor.

Sei que te conténs, nas palavras que gostarias de dizer, mas guardas para ti, sempre com medo que a tua opinião não importe, como se ninguém quisesse ouvir o que tens para dizer.

Refugias-te na ironia, porque te permite dizer, quase a brincar, aquilo que te vai na alma, sem que ninguém te leve demasiado a sério.

Sei que  te refreias nos afectos, não os demonstrando, com receio da rejeição, convicta de que ninguem poderia ter por ti o mesmo carinho, como se fosses indigna de amor.

Escudas-te na distância, porque se não te aproximares demasiado, não poderás
sentir apego e a rejeição não dói tanto.

Sei que quando falhas, ficas triste, e te perguntas vezes sem conta porque é que não fazes nada certo, com aquele sentimento horrível de falhanço a imiscuir-se em todo o teu ser, a fazer-te acreditar que faças o que fizeres, nunca será o suficiente.

E por isso, preferes resolver os teus problemas sozinha, mesmo que precises desesperadamente de ajuda, apenas e só para não teres de admitir a ninguém que falhaste e que és inútil.

Sei que escondes as mãos dentro das mangas do casaco, numa tentativa inconsciente de te esconderes, de passares despercebida. Porque se ninguém te vir, ninguém poderá fazer-te sentir  indesejada.

Sei que, quando não te podes esconder, e te sentes exposta e desconfortável, enrolas a mesma madeixa de cabelo, vezes sem conta nos dedos, ou entrelaças as mãos, apenas para teres algo que te distraia e um pretexto para pareceres ausente.

Sei que não olhas as pessoas nos olhos, temente de que lhes possas ver nas expressões o repúdio por ti, e por isso, preferes olhar um ponto acima das suas cabeças e imaginar que sorriem. 

Sei que caminhas quase sempre de olhos no chão porque isso te dá uma boa desculpa para, caso te cruzes com alguém conhecido, não teres de dizer um olá desajeitado.
  
Sei que fazes um sorriso incerto quando te dizem algo simpático, como se não acreditasse na possibilidade de alguém ter algo simpático para te dizer, habituada que estás a esperar o pior das pessoas.

Sei que te sentes a mais vezes demais, como se não devesses estar ali, e que por isso ficas em silêncio a assistir ao que acontece, sem te mexeres, sem te pronunciares.

Sei que não gostas particularmente daquela pessoa, cheia de defeitos escondidos por baixo da maquilhagem, que te olha do outro lado do espelho. Aquela pessoa que te encara, sempre com os olhos, da cor errada, semicerrados, num olhar de permanente desaprovação, e os lábios, demasiado finos, cerrados numa linha dura que claramente indicam desprezo por quem és.

Conheço-te todas as inseguranças e medos, e posso narrar-te cada episódio de rejeição, contar-te cada história de humilhação, porque sei de onde vêm cada uma das cicatrizes que tentas mascarar, cada uma das marcas que te esforças todos os dias por esconder.

...



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Enrola-te em ti mesma, como se isso fosse manter-te inteira, como se pudesse impedir que a escuridão alastre e te devore até á essência, deixando apenas um fantasma de ti.


Encolhe-te quando doer, num gesto quase automático, como se ao encolheres-te conseguisses escudar-te da dor, como se pudesses esconder-te e vê-la passar, apenas de raspão, quase sem te tocar.


Cerra os dentes, morde a bochecha, o que for preciso, para não gritares quando for demais, quando já não a conseguires suportar, e sofre em silêncio.


Não os olhes nos olhos, para que não vejam o vazio de ti alternar com a tristeza que transborda, inundando-te o olhar, e não terás de ver em olhos alheios o sentimento de pena que lhes inspiras e que tanto repudias.


Não fales sobre isso, deixa que o nó que sentes na garganta, te estrangule as palavras, em vez de as dizeres, em vez de lhes confessares que estás estilhaçada, e nunca te poderão apontar a fraqueza, nunca terão as armas para te poderem ferir novamente.


Não deixes que te toquem, com o pretexto de te confortarem, sob pena de ruíres completamente, de veres as tuas muralhas, que tão cuidadosamente ergueste, inertes aos seus pés, apenas para que possam trepar por elas, pisando o que ainda resta do forte que te protegeu, até te poderem olhar de cima.


Não deixes que te vejam chorar. Engole as lágrimas, afoga-te nelas se preciso for, mas não derrames uma única. Não te permitas declarar, de forma tão indesmentível, a tua fragilidade. Não deixes que te saibam capaz de sentir até ás lágrimas.


Enclausura-te em ti mesma, faz do teu silêncio o teu casulo e não deixes que saibam o que te consome.


Sorri, mesmo sem vontade, ninguém dará pela diferença. E se te perguntarem se estás bem, mente, ninguém saberá.


Se não puderes dizê-lo com palavras, di-lo com o olhar



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O tempo parece parado, petrificado naquele instante, em que, pela primeira vez, consegue lê-la. Fitam-se, e ela sustenta-lhe o olhar, dona e senhora de si, como se nada temesse, como se o desafiasse, convidando-o a desvendá-la.

Não fala, limitando-se a olhá-lo, sem subterfúgios, sem o habitual baixar de cabeça, sem nunca desviar o olhar, revelando-se. E naquele castanho caramelizado, encontra a resposta á dúvida que o assalta, intermitentemente, ao sabor das aproximações e distanciamentos dela. Vê na limpidez daqueles olhos, a transparência e sinceridade das palavras que deixa por dizer.  E o brilho que lhe dança no olhar, reflecte o fogo daquele sentimento que a consome.

Ela sorri, trazendo-o de volta ao presente, agindo como se depositar a alma no olhar, á mercê da análise dele, fosse tão simples como respirar, muito embora, num último relance, lhe tenha desvendado um breve lampejo de medo, a certeza absoluta de que ele  a tinha lido na perfeição e agora, finalmente, sabia.

Amada.



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Amou-a, apesar das mil e uma sombras que lhe bailavam no olhar, ocultando-lhe o cintilar sonhador que sabia lá habitar...

Amou-a quando o sorriso teimava em não aparecer, prisioneiro da tristeza que lhe devastava a essência, e quebrou as correntes, libertando-o, para que se derramasse sobre o mundo…

Amou-a, com as  lágrimas a correrem soltas pelo rosto, gotas de chuva, num qualquer inverno sombrio, que só o sol quente que ele era, lhe secou...

Amou-a, ainda sem a saber desfeita em mil pedaços, estilhaçada, uma e outra vez, em milhares de fragmentos tão ínfimos que quase se desfez em poeira, e que ele foi juntando, um a um, até a fazer inteira novamente..

Amou-a, conhecendo-lhe já a obscuridade, e tratando por tu os demónios instalados na sua alma, iluminou-a, fazendo-os recuar até aquele lugar esconso que trancou a sete chaves...

Amou-a, mesmo com os silêncios obstinados, que teimosamente interpunha entre os dois, tentando mantê-lo à distância, convencida de que não lhe merecia tanto apego.

Amou-a enfim, mais do que por aquilo que parecia ser, por quem era, com todas as imperfeições que apenas ela via, que aos olhos dele, eram apenas a prova suprema da humanidade dela, da sua fragilidade, o indício perfeito da necessidade de a proteger.  

Amou-a… e continuaria a amá-la, para lá do tempo, do espaço e das circunstâncias.


Quimera



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Dá por si perdida no olhar esfíngico, numa tentativa vã de lhe desvendar o enigma de tons terra.  Há muito que aquelas janelas, que deveriam revelar o que de mais íntimo lhe vai na alma, se lhe afiguram fechadas, mesmo quando abertas de par em par, nos raros momentos em que a encara de frente, sem nunca se demorar, nada desvendando, nada deixando antever para lá daquela permanente névoa cerrada, na qual esquece o norte e se desorienta. 

Isolado numa fortaleza de silêncios e aparente quietude, escuda-se do mundo, estratega rematado da sua própria defesa, ocultando a sua essência do desvelo dela. Domina os instintos com vontade férrea, não lhes permitindo qualquer passo em falso, qual senhor da guerra, ciente do poder da disciplina auto imposta.

Mestre na arte da ponderação, todo ele é  contenção e racionalidade pura, no modo frio como analisa cada detalhe de tudo, como um jogador de xadrez, certificando-se das consequências de mexer um dos seus peões.

Apesar disso, há nele ternura, visível apenas a olhos atentos, pequenos lampejos de emoção e sentimentalismo que procura ocultar, vestígios de uma mágoa qualquer que carrega no peito, como lembrete, para nunca mais se deixar esmagar pela dor.

Compreender-lhe os intrincados mistérios, ler-lhe a alma, sabê-lo de cor, nada mais é que uma utopia, uma busca frustrada a cada nova tentativa, como caçar quimeras em sonhos...

Desperta da contemplação, quando acidentalmente ele lhe toca, com os longos dedos frios, e sente a pele queimar no exacto local onde a tocou, qual fogo fátuo, uma chama brilhante mas efémera. 

E se ele é Quimera, ela é Fênix, deixando-se consumir nessa chama, até que dela apenas reste cinza, para renascer... E começar tudo de novo.



Pudesse ele...



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Pudesse ele esquecer quem é, despojar-se de si mesmo, despindo a essência, e ser por umas horas egoísta, deixando as consequências para depois...

Pudesse ele converter a insegurança que lhe entorpece o coração em coragem flamejante que lhe incendiasse os anseios desfazendo-os em cinza...

Pudesse ele extrair do seu âmago aquele sentimento que confinou ao mais recôndito da alma e que lhe revolve as entranhas, e colocá-lo a nu, em plena luz do dia, deixando-o livre para se revelar...

Pudesse ele segredar-lhe as palavras que de tanto serem caladas quase o sufocam e lhe queimam a língua, fazendo-as ecoar no íntimo dela, estrangulando-lhe a incerteza que lhe vê no olhar...

Pudesse ele roubar-lhe um beijo, que lhe sossegasse o desejo de a provar e lhe desfizesse a inquietação de saber qual o sabor dos sonhos...

Pudesse ele amá-la, extinguindo o fogo que lhe atiça a vontade de arder com ela, derretendo juntos numa chama perpétua...

Pudesse ela corresponder...

Expressões



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Os olhos são de um castanho escuro, com matizes de avelã. Vê-os vivos e brilhantes quando está alegre, e esmaecer, quase como cobertos por névoa, quando se entristece.

Às vezes traz no olhar uma expressão maliciosa  e travessa, quase sempre seguida de uma  piada parva, outras, raras, traz  uma seriedade incomum, acompanhada de um humor soturno.

Traduz o entusiasmo no modo como fica com os olhos muito abertos, e revela incerteza quando os semicerra.

Quando gosta, os olhos dela ficam mais claros, com o tom avelã quase caramelizado, acolhedor. Se odeia, escurecem e enchem-se de um frio gélido.

De quando em vez, fica com o olhar vítreo, fixo para lá da realidade, sonhadora e esquecida de onde está. E por vezes parece absorver a profundidade do presente num relance atento.

Fala com o olhar, e talvez por isso, parece evitar o contacto visual, fixando sempre um ponto distante acima da cabeça dele, talvez escudando-se do escrutínio de quem parece lê-la na perfeição, talvez consciente de que os seus olhos revelam mais do que pretende, talvez por pura timidez.

A boca é pequena, de tom rosado, com um sinal repousado no lábio inferior.

Quando sorri, tem um sorriso doce, que forma duas pequenas covas, não nas bochechas, mas nos cantos do sorriso, como se naquele pequeno espaço coubessem todas as alegrias do mundo.
E se se aborrecer, faz beicinho, quase como uma criança a fazer birra.

Às vezes, quando está concentrada em algo importante, morde o lábio inferior. Outras, quando refreia o ímpeto de dar uma resposta menos simpática, morde a bochecha por dentro, do lado direito.

Conhece-lhe bem as expressões, quase como se fossem dele, quase como se fossem a mesma pessoa.

O que o intriga são as palavras, as que diz, porque muito embora não duvide da sinceridade delas, lhe parecem cuidadosamente selecionados, cheias de segundos sentidos, como se dissessem algo sem o dizerem, e as que não diz, porque lhe parece haver algo mais nos silêncios súbitos dela, nos olhares que lhe evita e nos sonhadores, nas covinhas dos sorrisos que lhe dedica.

Interpretações



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Finge que são verdades absolutas as interpretações que fazem daquilo que escreve, como se ela fosse um livro aberto, que pudessem ler e cujas metáforas pudessem desvendar sem conhecerem o contexto e o íntimo da personagem principal. Deixa que distorçam as palavras dela, reescrevendo a história, de modo a que seja sobre ti, como se ela não fosse capaz de dizer clara e directamente aquilo que sente, quando o sente, como se precisasse de intérpretes e figuras de estilo na hora de revelar o que de mais secreto guarda na alma. Permite que joguem com os duplos sentidos das palavras que escolhe, como se ela não as escolhesse propositadamente, como se ela não previsse que as fossem ler descontextualizadas, para provarem a teoria. 

A verdadeira beleza da escrita é essa, o poder pôr o coração no papel e contar uma história que vai de encontro aquilo que sentimos, sem que essa seja, necessariamente, a nossa história ou então, contar uma história que nada tem a ver com o que sentimos, mas que vai de encontro ao que outros sentem, transmitir emoções que não sentimos no momento em que escrevemos, mas que sabemos que vão emocionar quem as ler, o poder viver num mundo de fantasia, sem tirarmos os pés do chão, criar personagens inspiradas em pessoas reais e podermos ser quem nunca fomos ou seremos.

E sim, a escrita será sempre a primeira paixão dela, o seu elemento, onde se sente confortável, onde se pode exprimir com maior facilidade, onde pode encontrar conforto, onde pode repousar o ser quando o raio da vida parece demasiado complicada, onde o amor, a paixão, a dor, o medo, a solidão e até mesmo o silêncio são fáceis de compreender, de revelar, de expressar. A escrita será sempre o porto de abrigo da sua alma, onde os segredos tanto podem estar escondidos á frente dos olhos, numa frase simples, como podem ser revelados numa frase difícil de decifrar, onde os seus demónios tanto se consomem, como renascem, onde os sonhos tão depressa nascem, como fenecem, onde se perde e se volta a encontrar.

Quanto ás interpretações... Vou facilitar-te a vida, sim, "ela", neste texto sou eu.
E tu? Interpreta como quiseres ou deixa que interpretem por ti...

Gosta de ti.



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Vai espicaçar-te com trocadilhos parvos e provocar-te só para te arrancar um sorriso. Cada conversa que tenhas com ela, vai ficar-lhe na memória e lembrar-se-á de cada detalhe. Vai falar-te das coisas que a apaixonam, com uma alegria quase incontida.

Provavelmente vais perceber que por trás da mulher à tua frente, está uma menina que não cresce, que acredita em principes e contos de fadas, que acha que o amor é sempre a resposta, que os sonhos são para serem realizados e que vale a pena morrer por ideais. No fundo, vais ver-lhe a essência, sem a capa de cinismo que usa para conseguir viver no mundo real.

Vai contar-te pormenores idiotas da vida dela, partilhar histórias ridículas e rir á gargalhada do desastre com pernas que sabe ser. Vai falar ininininterruptamente, saltando de tema em tema, sem guião nem lógica definida, porque o silêncio a deixa desconfortável.  E quando a conversa começar a ficar séria, vai desconversar e fazer-se de desentendida porque o "sério" a deixa sem jeito.

Não vai olhar para ti quando fala e se eventualmente o fizer, será por breves momentos, desviando o olhar em seguida, porque lhe parece que se a olhares nos olhos, poderás ver para lá da máscara de segurança com que esconde as fragilidades. Vai tentar ajudar-te se achar que precisas, mesmo que às vezes atrapalhe mais do que ajude...

E vai fazer tudo isso porque, á maneira estranha e desajeitada dela, gosta de ti e confia em ti... mesmo que não o diga, porque... Caramba, quem é que gosta de dizer "gosto de ti" a quem quer que seja?
Quem é que gosta de dizer palavras tão difíceis de dizer, expor a alma, as emoções e os sentimentos de forma tão clara e tão passível de rejeição? 

Mas ela, com aquele feitio estranho e aquele ar de quem odeia tudo e o que ainda está por inventar... gosta de ti!

E o tempo parou...



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Abraçou-a. Não era fácil abraçá-la, sempre a esquivar-se a qualquer demonstração física de afecto, como se temesse que o toque, por mais inocente que fosse, a pudesse desarmar e derrubasse a impenetrável muralha que erguera á sua volta e que na maioria das vezes era imensamente eficaz a manter as pessoas á distância.

Odiava vê-la assim, fragilizada, indefesa, de olhar turvo pelas lágrimas e parecendo completamente perdida, esquecida até de usar a máscara de dureza que usava habitualmente para se proteger do mundo.

Há muito que esperava poder abraçá-la mas detestava que fosse assim. Colocou os braços á volta dos ombros dela e apertou-a contra o peito, procurando escudá-la da dor que a assolava e cujos motivos ele desconhecia. Procurou colocar naquele abraço todo o carinho que sentia, todas as palavras doces que ela, com aquele jeito fugidio, nunca lhe deu oportunidade de dizer.

Sentiu a cabeça dela encostada ao seu peito, e as lágrimas molharem-lhe a camisa. Baixou o olhar para ela, e viu as longas pestanas cobertas de pequenas gotas cintilantes e os olhos cor de avelã olharem-no. Sentiu-a contorcer-se no seu abraço, esticando uma mão trémula que lhe pousou na face, e viu o rosto dela aproximar-se. Sentiu os lábios quentes dela e o sabor das lágrimas salgadas.

E o tempo parou.

Promete.



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Se o teu olhar se perder no meu, e eu perder a razão, se esquecer onde estou, quem sou e o porquê deste meu jeito, se me abandonar a ti, se me render aos teus sorrisos alegres, se me encantar pelos teus gestos meigos, se me deixar caír no teu enleio e for tua, tão tua que a minha alma não saiba mais como me pertencer...
Promete que me vais querer como sou... que não vais tentar domar a selvagem em mim, que não vais tentar curar a romântica incurável que sou... Promete que não vais tentar ensinar-me a ser forte quando a minha fragilidade precisar do teu abraço...que não vais pedir-me calma quando eu precisar de gritar a minha raiva aos 7 ventos...
Promete-me que me vais querer, como me queres agora, enquanto ainda não sou tua...

Dúvida.



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Quando ficas a sós, interrogas-te, uma e outra vez. Na tua cabeça, como num filme, passam, uma a uma, todas as conversas, cada momento, em câmara lenta, para que os possas rever e analisar. Arranjas mil e uma desculpas, argumentos vazios para o "é impossível" em que queres tão desesperadamente acreditar.  Debates-te internamente entre o que é visível, factual,  os gestos, as atitudes, e o que é meramente abstracto, os motivos, as intenções. 

Mas mais do que duvidar do que lhe vai na alma, e que denuncia apenas em pequenos gestos, suspeitos sim, reveladores talvez, mas justificáveis, pelo menos na tua óptica, recusas-te a assumir o que te faz sentir.

Queres acreditar que realmente não passam de coisas da tua cabeça, ilusões, más interpretações, porque dessa forma podes continuar a fingir que não sentes, que não te afecta e não precisas de pensar mais nisso, porque "nunca vai acontecer". Sem uma centelha de luz que possa tornar o  teu "impossível"  possível, não tens de lidar com a dimensão da tua própria vulnerabilidade, com todas as fragilidades, anseios e medos que a tua condição humana acarreta.  

As perguntas sem resposta acumulam-se, corroem-te como ácido, infiltram-se em todos os teus pensamentos, minam a tua mente e roubam-te a paz de espírito.  Queres questionar,  tirar esse peso do peito, mas colocas tudo em perspectiva, analisas tudo de diferentes ângulos, pensas demasiado, temes sem saber bem o quê.

O "E se..."  é esta noite, uma vez mais, a tua melhor companhia, quando deitas a cabeça na almofada, ciente de que os teus sonhos vão ser povoados por aquele olhar... Amanhã, provavelmente, será o teu maior arrependimento. E se...?

Ainda sobre ela...



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As palavras jorram em catadupa, emendando um assunto no outro, quase sem pausas para respirar. Parece confortável, dona e senhora de si, no entanto, é só aparência.

Num olhar mais atento, vês a insegurança no modo como baixa o olhar quando a encaras ou o fixa num ponto bem distante acima da tua cabeça, nos dedos trémulos que agarram numa caneta e começam a rabiscar só para evitar o teu olhar, no meio sorriso, sem jeito, na hesitação ao escolher as palavras.

Faz com que tudo pareça natural, age como se aquela fosse ela, como se aquelas pequenas manias sejam coisas sem importância. Na realidade, é timidez, desconforto, insegurança, medo. Uma amálgama de fragilidades que procura ocultar e que só vês se olhares com atenção.

Fechar a porta?



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Quebram as correntes que os prendem no âmago do meu ser e trepam como hera pelas paredes da minha alma. Enclausurados em mim durante demasiado tempo, libertam-se finalmente e deixam-me inerte, na dúvida entre reconhecer-lhes a existência ou lutar uma vez mais, até ter a alma em ferida e confiná-los novamente ao mais recôndito dos esquecimentos. E quando percebo, ja me corroem a essência. Todos os sentimentos que silenciei, que refreei, que escondi, até de mim mesma, á solta... No olhar que o espelho me devolve vejo lampejos da perversidade que se instalou e há naquele sorriso estranho uma espécie de desafio trocista, como se me perguntassem: e agora, o que vais fazer connosco?
E eu não sei. Não sei como voltar a colocá-los naquele lugar de mim que nunca visito, como fechar a porta que nunca deveria ter aberto.

Sobre ela...



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Não te olha nos olhos, como se tivesse medo, não do que vai ver, mas do que pode revelar. Como se pudesses ver, através do olhar dela, os segredos que guarda na alma. Não fala sério, nunca o faz, escudando-se na piada, como se o riso lhe espantasse os demónios. Posiciona-se estrategicamente, sempre a uma distância segura, evitando o toque, como se ao estar fisicamente longe, pudesse afastar-se emocionalmente, não permitindo que ninguém se aproxime o suficiente para a magoar.  Parece absolutamente calma, no entanto, enrola a mesma madeixa de cabelo nos dedos, vezes sem conta, num tique nervoso fácil de descodificar. Não parece o tipo frágil e ainda assim, dás por ela a morder a bochecha para não sucumbir às lágrimas. E quanto mais a conheces, menos a entendes.

Neste lugar á noite...



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As luzes tremeluzentes, lá muito em baixo, parecem reflectir o meu estado de alma, os meus sentimentos a oscilarem perigosamente, ora puros e cheios de brilho, ora egoístas e negros como breu. 

Reina o silêncio, apenas interrompido pelo cantar das cigarras e pelos sons distantes de uma cidade que parece não dormir, tal como eu, acordada pelos ruídos gritantes das minhas incertezas.

Estou o mais próximo que é possível estar do céu aqui, e ainda assim, nunca me senti tão definitivamente no inferno.

Vejo uma estrela cadente e peço-lhe um desejo, plenamente consciente de que a sua realização, seria também a concretização do meu pior pesadelo.

Vim á procura de paz, mas sinto-me cada vez mais inquieta, procurava encontrar-me e quando dou por mim, estou ainda mais perdida...

Naquele lugar



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Esquece-se dela, no momento em que se despedem, como se ela apenas existisse ali, naquele lugar onde ela sorri com lábios de morango e ri com vontade, numa gargalhada quase musical, onde as palavras fluem como um rio e discorre apaixonadamente sobre sonhos e ideais, onde ela se afasta e evita o toque, quase como se temesse que uma corrente eléctrica a atravessasse, onde baixa o olhar avelã, daquele modo tão característico, numa timidez tão estranha em alguém que parece tão extrovertido.

Esquece-se dela, naquele lugar onde ele pode fazer confidências e contar-lhe histórias e ideias sem nexo, onde pode ser mais frágil e humano sem temer que o ache fraco, onde pode perder-se em ilusões e sonhos e sentir-se acompanhado, onde franzir o sobrolho de concentração, numa expressão tão habitual nele, não é considerado sinal de amuo ou aborrecimento, onde pode ser quem é, sem estranhezas ou embaraços.

Esquece-se dela, naquele lugar onde pode observar-lhe os trejeitos e expressões, sem receio de interrupções, sem temer que ela possa perceber, concentrada que está em evitar encará-lo, onde se contém e não diz as palavras que lhe queimam a língua, onde a vontade de perder a razão com ela lhe devora as entranhas, onde é, enfim, seguro estar com ela.

Esquece-se dela, naquele lugar, onde a existência dela não se fina, mas lhe é mais agradável, onde a pode esquecer hoje e reencontrar amanhã.

Esquece-se dela, para não ter de a lembrar, a cada passo que dá, com a consciência que a vida lá fora nunca será como naquele lugar.

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