O farol - II



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Pararam de rir muito tempo depois. Ela deitou a cabeça sobre o peito dele e adormeceu. Ele acariciou-lhe o cabelo até caír no sono também. Quando voltaram a acordar, já a tarde ia a meio. Vestiram-se em silêncio, ainda desorientados com o que tinha acontecido naquela noite. Ela temia o momento em que abandonassem o farol. Como se aquela porta velha e ferrugenta pudesse encerrar a magia daqueles momentos e nunca mais ela lhes pudesse aceder. Quando desciam as escadas, ele deu-lhe a mão. Saíram às escondidas. Áquela hora muita gente passava por ali. Havia os pares de namorados que escolhiam as rochas para se refugiarem do mundo, havia os casais que levavam os filhos a caminhar, havia as senhoras que aproveitavam para fazer exercício, na eterna luta contra a idade.

Ele não precisou de lhe dizer nada. Enveredaram por entre as rochas e foram ter a um local deserto da praia. Ele sentou-se e ela aninhou-se entre as pernas dele. Ficaram ali, em silêncio. A felicidade dele estava ensombrada. Queria falar-lhe disso, mas faltava-lhe a coragem. Não sabia como lhe perguntar. Até que ela se virou para o olhar. e a pergunta que lhe queria fazer saiu disparada:

- Porque não me disseste que era a primeira vez?

Ela corou. E ele quase se esqueceu da resposta que esperava ao vê-la corar. Ficava tão bonita com aquele rubor na face.

- Teria feito diferença? - respondeu-lhe com uma pergunta. Claro, era tão tipico dela. Responder às questões com nova pergunta dava-lhe tempo para perceber a intenção, prever a reacção do outro e pensar na resposta certa.  Mas naquele momento ela não estava a jogar. Queria realmente saber se ele teria feito algo diferente se soubesse.

A contragosto ele respondeu: - Talvez. Agora nunca saberemos. Talvez não o tivesse feito se o soubesse.

Ela ficou pálida. Fixou o olhar no dele e perguntou: - Estás arrependido? Porquê?

Ele não fugiu do olhar dela. - Não estou arrependido. Não é disso que se trata. Trata-se de ti. Não de mim ou de como me sinto. A questão é saber se tu não estás, se amanhã não te vais arrepender. Eu, ao contrário de ti, já vivi muito. Já estive com muitas mulheres, umas por amor, outras porque aconteceu, outras porque me apeteceu levá-las para a cama.  Para mim, essa nunca foi uma questão que tivesse importância. Quando acabava, não precisava de me preocupar com isso. Mas contigo é diferente. Tu já deves ter gostado de alguém, mas nunca te entregaste assim.

Ela reflectiu por momentos, depois disse-lhe: - Arrependimento é uma palavra que nestas coisas não deveria existir. Não me arrependo. É verdade que nunca me entreguei assim. Mas também é verdade que ninguém me encantou como tu. Que nunca ninguém me soube chegar ao coração como tu. Que nunca ninguém soube quebrar cada uma das barreiras que ergui à minha volta. Que nunca ninguém me fez sentir especial como tu.  A mim parece-me que estás preocupado com qualquer coisa que nada tem que ver comigo ou com o que sinto.

- Bem, também existo eu. - começou ele - Eu que me sinto como se te tivesse levado a fazer algo que não deverias ter feito. Que me sinto como se te tivesse levado a prenderes-te a mim. Que me sinto como se te fosse deixar uma marca para o resto da tua vida.

- Não me levaste a fazer nada. Em momento nenhum me senti manipulada. Sim, sei bem que nada do que fizeste ontem foi inocente. Que o jantar, o caminhar à luz do luar e o farol tinham segundas intenções. Julgas-me assim tão ingénua? Ao ponto de achar que não o planeaste? Não, não sou assim tão naif. Claro que me levaste a prender-me a ti. Mas não foi o que aconteceu ontem que levou a isso. Foram os meses de cartas quase diárias. O modo como só através daquilo que escrevias me mostravas cada uma das coisas que te rodeavam. E como depois, quando me chegavam as fotografias elas eram exactamente como eu as imaginava. O modo como compreendias cada um dos sentimentos contidos nas minhas palavras. Como os decifravas, como me ajudavas a viver com eles.   E sim, é provavelmente uma marca para sempre. Mas fui eu que escolhi essa marca, fui eu que escolhi quem a deixava, fui eu que te escolhi e te permiti marcares-me! Se a tua preocupação é o facto de te sentires na obrigação de alguma coisa, não precisas de te preocupar. Podes ir embora a qualquer momento, não vou fazer uma cena, não vou perseguir-te.  - terminou com os olhos já cheios de água.

A violência da resposta deixou-o chocado. Ela estava a perceber tudo mal. Aquele sentimento de culpa que lhe pesava na alma nada tinha que ver com um desejo de partir. Nada tinha que ver com a liberdade dele.

- Ouve-me. Não quero ir a lugar nenhum. Estou aqui e vou ficar, enquanto assim o quisermos os dois. Sinto-me culpado, sim. Porque te seduzi deliberadamente. Porque, ainda que aches que tomaste uma decisão, a verdade é que te conduzi a ela. Tu achas que não. Mas tu já não consegues olhar para mim com clareza. És tu quem me preocupa. Ontem entregaste-te totalmente. Sem questionares nada. Abdicaste de algo que sempre preservaste em nome de um sentimento que nem sabes o que é. Se eu não for exactamente aquilo que estás à espera que eu seja, vais magoar-te. Vais recriminar-te pela decisão que tomaste. Vais culpar-me a mim e nunca voltarás a olhar-me da mesma forma. - Disse-lhe aquilo sem nunca largar o olhar dela, analisando cada uma das suas expressões.

- Eu não sou de cristal. Não quebro com facilidade. Ainda que não sejas aquilo que me pareces ser, hei-de saber lidar com isso. Deixa de te sentir culpado. Não decidas por mim e não te ponhas a fazer previsões. Se fossemos engolidos pelo mar neste momento, o teu último sentimento seria essa culpa, ao passo que eu me afogaria feliz.  Limpa a tua alma desse sentimento porque não sabes o que pode acontecer daqui a um minuto ou dois.  Assegura-te que estás feliz e em paz. - O modo como ela falou não admitia réplicas.

Ele abraçou-a apesar das dúvidas. Ficaram ali calados até a primeira estrela surgir no céu. Depois seguiram para casa dele.

Ele quis cozinhar. Não lhe apetecia por aí além partilhar aqueles momentos com o resto do planeta num restaurante qualquer. Ela foi tomar banho. Quando saiu, e como não tinha trazido roupa, vestiu um roupão turco dele. seguiu para a cozinha e enquanto ele terminava de cozinhar, ela pôs a mesa. Não conseguiu evitar um sorriso quando o viu de avental, com o cabelo preto todo desalinhado, os olhos verdes iluminados por uma vela e a garrafa de tinto na mão. Ele era verdadeiramente bonito. Tão bonito que ela ficava estática na contemplação da beleza dele. Durante o jantar, não falaram muito. Estavam ambos extenuados pelas emoções daquele dia.

Depois de arrumarem a cozinha foram para o quarto. Ela despiu o roupão e deitou-se. Adormeceu em minutos.  Ele foi tomar banho e quando voltou parou à porta a olhá-la. Parecia tranquila. Estava deitada de lado, com um braço flectido e a mão debaixo do rosto. O outro braço estava estendido ao longo do corpo. O lençol branco contornava-lhe o peito e deixava à vista o joelho dela. O contraste do tom de pele moreno dela com o lençol branco era bonito de ver. Deitou-se silenciosamente ao lado dela, mas ela sentiu-o. Abraçou-o. Ele beijou-lhe a testa e acariciou-lhe o rosto, esperando que ela voltasse a adormecer. Tê-la ali ao lado dele era uma imensa prova de resistência. O corpo dela, despido, tão próximo do dele. Mas nessa noite ele não iria tocá-la. Não seria capaz. Não depois daquela conversa, depois daquele sentimento de culpa que ela lhe conseguira inspirar sem querer.  Se ela o procurasse, tomá-la-ia, sem a menor dúvida, sem qualquer hesitação, sem culpa. Mas não naquela noite.

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